Uma proposta aparentemente sem vantagens. Fazer parte de uma rede de voluntários comprometidos com a formação de cidadãos plenos, dotados de aprendizado intercultural obtido através da troca de ideias e experiências entre indivíduos, num programa que atua preferencialmente com jovens de 53 países, que tem status consultivo no Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas. Fomos família hospedeira por 06 anos e tornei-me conselheira e orientadora do programa em Cuiabá. A cidade esteve movimentada, impregnada pela cultura de mais de 50 jovens, de 12 países da Europa, América, Ásia, África e Oceania.
Abri primeiro meu coração para acolher, entender e apoiar esses jovens ávidos para descobrir um mundo novo, romper com seus limites e aventurar-se numa terra distante, envolvidos também pela possibilidade de ser um cidadão global, promotor da paz e do entendimento num mundo já consolidado pela injustiça, desigualdade e pela intolerância. Abrimos em seguida as portas da nossa casa, uma cama a mais nos quartos e aprendemos a compartilhar tudo… a linguagem, a comida, o espaço, o amor. Incorporamos ao nosso dia-a-dia uma nova língua, novos hábitos e exercitamos a tolerância e a compreensão diante dos choques culturais.
O projeto, em princípio lúdico, falava do desenvolvimento de uma cultura de paz, aquela crença romântica de que nos conhecendo nos amamos e afastamos os perigos da guerra. Conhecendo-nos resgatamos nossos valores essenciais, como o respeito pela liberdade sem distinção de raça, sexo, língua, religião ou status social. Propomo-nos a ser um efetivo canal para o desenvolvimento integral daqueles seres humanos. Abrimos espaço para permitir o contato com outras culturas e dessas relações extrairíamos a interculturalidade.
Na prática iniciamos no ano de 1990, no mesmo ano que o Presidente Sul Africano Frederik Klerk põe fim ao apartheid, regime de segregação racial estabelecido no País desde 1948. Com o propósito de interagir com pessoas de países com os quais não detínhamos muito conhecimento, no ano de 1994, hospedamos uma jovem sul-africana. Nesse mesmo ano Nelson Mandela seria eleito Presidente, após passar 28 anos na prisão. Com essa jovem aprendemos que a primeira prisão de Nelson Mandela aconteceu em 1960, dois anos depois foi preso novamente, condenado a cinco anos de prisão, mas em 1963 veio a condenação de prisão perpétua e seu martírio nos anos que ficou na temida prisão de Robben Island.
Com Nelson Mandela preso, as manifestações contra o regime ganharam corpo e um novo líder, Steve Biko, um jovem estudante de medicina que engajou-se na luta contra a segregação racial e liderou vários movimentos no final da década de 60, tentando fazer o jovem negro sair da condição de expectador num jogo onde ele deveria ser o principal jogador. Steve Biko provocou os jovens negros das escolas de segundo grau e universitárias e acabou tornando-se a mais espetacular liderança jovem no meio estudantil.
Lançou as sementes do movimento “Black Consciousness” (consciência negra) e se tornou uma liderança política dentro e fora dos campus universitários. Desenvolveu programas comunitários para atendimentos aos negros, como clínica e creches. Perseguido pelo regime racista, foi expulso da universidade e, mais tarde, da própria cidade. Biko nunca se curvou ao medo e seu indescritível orgulho de ser negro era também um instrumento importante na luta contra a segregação racial. Apesar das restrições impostas pelo regime, Biko descumpria as ordens judiciais e se movimentava mobilizando os jovens. Em 1977 foi preso, torturado e morreu a caminho de Pretória, num momento em que era transferido pelos guardas. Havia sido severamente espancado e agonizava com a hemorragia cerebral. Essa historia contada no livro “Cry Freedom – Um grito de Liberdade” originou o filme com o mesmo título.
Trechos dessa historia foi também narrada pelo próprio Nelson Mandela em seu belíssimo livro “Long Walk to Freedom” (Longo caminho para a Liberdade). Após conhecer essa história, a permanência dessa jovem na nossa casa era algo que nos emocionava e nos orgulhava muito, sobretudo porque eu havia viajado algumas vezes para receber treinamento sobre essa troca intercultural, sobre as possibilidades de intercambiar esse tipo de conhecimento, rico em detalhes, passionalidade, onde escapa algo que os jornais e os livros não retratam. A África do Sul entrou na nossa vida e continuamos a ouvir a historia da Lianne. Que vivia o paradoxo de sentir-se deslocada dentro do seu próprio País. Negra, mãe branca, pai negro, porém com alto status social por sua formação como médico. Por fim o inevitável aconteceu, apegou-se a nossa cultura, aprendeu nossa língua, voltou para casa um ano depois, aos prantos, enrolada numa enorme bandeira do Brasil.
O vinculo afetivo continuou forte, minha filha inesperadamente fez as malas e foi para Pretória, atrás dessa historia fantástica de construção da cidadania, do projeto de paz que havíamos nos envolvido lá atrás. Andou pelas ruas de Pretória durante o governo de Nelson Mandela, presenciou a desconstrução do terrível sistema de apartheid, contagiou-se com a alegria, com as danças, com as roupas coloridas. Viveu, comeu, dançou como se fosse um deles.